terça-feira, 25 de março de 2014

Do fracasso ao casulo

Se acontece com a grande maioria, eu não sei. Sei que aconteceu comigo, e não foi lá muito bom.

            Começarei dizendo que a todos os meus inúmeros fracassos eu empregava nome e sobrenome. Eu cerquei as pessoas com o meu ódio, as chamava de mesquinhas, burras, tapadas. Perguntava-me como podiam agir assim. Estavam sempre a falar nos seus smartfhones, sorridentes, alheias a tudo o que acontecia no mundo. Como poderiam ser assim tão felizes, enquanto eu mergulhava na mais profunda depressão? Afinal, segundo a mentira que eu dizia a mim mesmo, a culpa por ser quem sou não era minha (e aqui eu deixo um pouco da culpa ao Rousseau e sua teoria do bom selvagem. À merda, francês!).
            E eu tomei muitos remédios. Remédios de todas as cores e sortes. Porque comprimidos despertam em pessoas desesperadas um certo fascínio. Eu os enxergava como pura magia. A solução estava ali, naquele pequeno círculo com raio de poucos milímetros.
            E eu bebia também. Talvez tenha bebido o salário de cinco anos inteiros. Nunca mudei de emprego, nunca terminei a faculdade (e tentara por duas vezes, foi como insistir no erro).
            Mas, quando tencionei escrever este texto esperava que algo ocorresse. Uma espécie de redenção. Mas já aqui não sinto vontade de escrever. Foi o que ocorreu comigo no último fim de semana, depois de passar mal e ser carregado até em casa pelos meus amigos. Hoje ainda é terça. O ocorrido foi no domingo. Mas, em alguns momentos alguma coisa queima a minha cabeça. Uma espécie de vergonha, talvez a mesma vergonha que quem estava comigo sentiu. Eu sei que todo mundo já chapou o globo um dia. Mas, as pessoas que estavam ao meu lado eram especiais demais. Até ela estava lá! Mas enfim, aconteceu e agora chegou o momento de mais uma vez me afastar, ficar longe de todo mundo. Ler e ver filmes no sofá, beber muita água e, quem sabe, morrer no ostracismo.

            Mas eu não morro, sou desimportante demais pra me levar a sério.


Mas eu volto pra contar essa história com detalhes...

terça-feira, 31 de dezembro de 2013

Dico

Ai, mataram meu carneiro! E cortaram os quatro ‘pé’...”, era o que cantarolava o Dico todos os dias à porta de um bar miúdo e sujo no centro da cidade. Por aqueles tempos eu não parava em emprego algum. Pululava de bairro em bairro. Sempre distante da felicidade das campanhas de publicidade, sempre distante das notícias do mundo, sempre distante das pessoas. Amigo íntimo dos bares e cabarés.
            Nunca conheci o Dico a ponto de travar uma conversar com ele. Sempre me pareceu um ser sobrenatural. Na verdade, eu nunca o ouvi falar com ninguém. Ele chegava ao balcão, murmurava algo ao balconista, um som indecifrável, quase gutural, e este prontamente o atendia com uma dose de conhaque e uma lata de cerveja. Ambas eram consumidas em poucos minutos, já que a cada gole no conhaque, Dico virava sedentas e refrescantes goladas na lata de cerveja gelada. Pedia outra vez a mesma combinação, de novo com o mesmo murmúrio indecifrável. Em seguida a terceira, a quarta, a quinta... e o show tinha seu início. Cantigas regionalistas, marchinhas de carnaval, canções de amor entre jovens do sertão que se separavam porque o rapaz precisava partir rumo à cidade grande e fazer a vida (sempre me vinha a cabeça o velho Jura desdentado com essas canções). O Dico cantava com uma voz fanhosa e rouca, o ritmo parecia sempre o mesmo, assim como a melodia. Um ar de melancolia vibrava na garganta e os olhos, amarelados e de ralas pálpebras, marejavam.
            Ninguém reclamava daquela cantoria do Dico, até mesmo porque não se podia pedir muito de um bar e região como aqueles. Por vezes, ao término de alguma canção tristonha, percebia-se aqui e ali algum malogrado bêbado a suspirar e gemer identificados que ficavam com a história das canções. Alguns aplaudiam e outros chegavam a agradecer e louvar o velho Dico:
            - Valeu, Dico! Tá inspirado hoje o cabra!
            Eu da minha parte apenas observava. Sentia-me bem ao lado de pessoas assim. Tinha um quê de familiaridade, me seduzia a autenticidade daqueles tipos trôpegos e fedorentos. Éramos bebuns de sujos botecos alheios às nossas próprias condições, aos bombardeios no Iraque, à primavera árabe, à posse do primeiro presidente negro dos Estados Unidos e da primeira presidenta mulher do Brasil. Solitários. Muitos de nós trilhávamos o caminho dos caramujos. Não esperávamos nada de tudo, não calculávamos o que viria a ser de nós amanhã ao acordar com latejantes dores de cabeça e sedentos por água ou café, pouco nos importava que as mulheres não gostassem de homens bêbados e exalando tabaco. Os famosos “bocas de cinzeiro”. Por vezes, tudo se resumia ao queimar de um cigarro. Lento, saboroso, ultrajante. Era isso o que éramos. Transformávamos o fado da solidão em conforto, afinal podíamos pegá-la, amassá-la, arremessá-la contra o muro dos condicionamentos sociais e aí acontecia o fenômeno do nosso reconforto. Solidão é a liberdade dos que se sentem oprimidos. Deveriam empregar isso aos dicionários, além de incluir convenção como a palavra antônima a sua.
            E o Dico nos materializava e interpretava. Não por suas canções, mas por ser daquele jeito, um homem que bebia sem pronunciar palavra, mas que cantava, aliás grunhia mal contadas histórias com aquele ar de extraterrestre. O Dico era um além-ser, uma espécie de trombeta “incelestial”, ou melhor, era a trombeta do submundo, do centro da cidade. Sempre melancólica, um tanto gaga, fanha, nada conhecedora dos ditames da língua. Aliás, pra quê ditames? Bêbados nunca dizem nada mesmo. São meros representativos do não-ser. Ouvia-se em algum canto do balcão algo referente ao futebol e às prostitutas, aos relacionamentos malogrados, “Aquela maldita! Só fingia que me amava. Eu morro se ela estiver com outro, morro!”, às desilusões, brindes de felicidades fáceis e felicitações hipócritas, mas nada que desfizesse aquela áurea, aliás, aquele estado pegajoso, pútrido e infértil que reunia algumas poucas pessoas num mesmo lugar em busca de uma efêmera embriaguez, propriedade de todo e qualquer sedativo, e de um trocar trôpego de passos. E o Dico a nos cantarolar, a nos envolver nesse clima de nada, um vazio de coisas materiais, mas repleto de movimentos e sensações. Éramos como árvores a reverberar no lixo. Nutria-nos o álcool e a podridão ao passo que, embalados pelas marchinhas carnavalescas de Dico e a ranhura de sua voz, celebrávamos o ritual cotidiano dos pequenos suicídios.

            E é claro que eu adorava o Dico! Ansiava pela sua chegada. Queria vê-lo grunhir pedindo seu conhaque e sua lata de cerveja, contemplava-o a engoli-las, a degustá-las e depois visualizava o processo de sonolência que lhe tomava conta: seus ombros pendiam à frente da cabeça, o tronco se curvava, apoiava-se com um dos cotovelos no balcão, os olhos iam apagando e uma nuvem, a nuvem do vago, obscurecia-os. A boca sedenta sempre a salivar gritando por mais conhaque e cerveja. Ele vivia o seu nirvana particular e quando, em movimentos lentos e peristálticos, o pomo de adão na garganta se manifestava, uma angustia me tomava conta. Ele ia iniciar o grunhir de alguma canção triste e todos nos sentiríamos bem, alheios, feios. Dico nos fazia sentir autênticos.

terça-feira, 7 de maio de 2013

Reflexões de um abduzido - Final

E a felicidade me envolveu. Inteiramente. Detive-me diante do telão de led e tudo parecia genialmente e meticulosamente construído para a minha satisfação. Tudo! A música (que já não parecia mais uma batida esquizofrênica), as animações dos telões, a caixa de som vibrando, as pessoas dançando ou andando ou beijando ou fritando... Lembrei-me nesse momento da conversa daqueles outros putos. Eu sentia meu corpo arder. Encontrava-me no inferno? Não sei nem se existe o inferno, mas se existe, ali era a porta de entrada pra ele. E todos nós éramos pequenos aspirantes a demoninhos, endiabrados e enlouquecidos de vontade de adentrar aos portais das profundezas com o intuito de fritar muito mais, e mais, e mais, e mais... A batida se incorporava à rítmica do coração. E mais, e mais, e mais... E de repente, a música nos causava ânsia. Ela nos apontava um caminho, nós não podíamos nos desviar. A música é a grande chave, e ela nos consome, nos embriaga e nos domina. Estávamos sentindo o que Pedro e Paulo sentiram em Atos dos Apóstolos quando ficaram bêbados pelo Espírito Santo. Estávamos embriagados no espírito, se era santo, não sei!
            Foi em meio a esse turbilhão de pensamentos e sensações que me vi dançando. Eu já estava suando e isso significava que fazia algum tempo que meu corpo se movimentava. De verdade, na sinceridade: eu não sabia que estava dançando. Nunca fui de dançar, sou horrível pra isso, pior que um cone! Mas eu dançava e ninguém ao redor se importava com a maneira com que eu estava dançando. As vaidades do homem se suprimiam. Ali éramos outros seres. Extraíram o nosso plasma, desidrataram o nosso cérebro, retiraram nossas roupas, estávamos nus. Todo mundo! Nu com a mão no bolso!
            Pensei que gostaria de estar ali com o velho Buk. Acho que ele detestaria, nunca gostou de companhia, mas eu queria o parecer dele sobre tudo aquilo. Foi então que ele me apareceu nos pensamentos, em meio ao frenesi da música:
            - Hei, James! O que pensa que está fazendo?
            - Estou dançando, Buk!
            - Isso ta uma droga! E o mais surpreendente é que tem uma gostosa olhando pra você com ares de libertinagem. Seu puto, vai se dar bem!
            - Acho que não estou com muita vontade de pegar ninguém, disse com um tom deprimido.
            - James, James! Você não consegue se enxergar mesmo. Olhe só pra você: um falido. Não quero que seja mais um hipócrita. Todos os dias você me procura e eu lhe respondo. E lhe digo sempre que a solidão não é uma má história de vida. Veja todas essas pessoas. Estão simplesmente felizes, estão quase ejaculando uns nas caras dos outros. Se aquela gostosa vier te esfregando os peitos na cara, faça valer os seus hormônios e bote no rabo dela, ta me entendendo?!
            - Ok, Buk! Farei isso, ela é realmente bem gostosa!
            - E não pense que ela te telefonará no dia seguinte. E você também, à partir de agora nunca mais telefonará no dia seguinte. Você é um autêntico paulista, o último representante da mediocridade humana, não se envergonhe, nem me envergonhe!
            - Onde você anda morando, Buk?
            - No paraíso. Tem conhaque no paraíso, sabia?
            - Como assim, conhaque?
            - Sim, contrabandeado na fronteira com o purgatório. A Madre Teresa de Caucutá é quem faz os pedidos das caixas de uísque. Aquela danada mama um etílico de forma desavergonhada... hahahaha!
            - Ta confuso pra mim. E Deus?
            - Deus está por aí, que falar com ele?
            - Acho que hoje não, estou um tanto atarefado no momento. Sabe como é. Preciso botar no rabo daquela gostosa que está se aproximando de mim.
            - Não responda a Deus da mesma forma que ele lhes responde.
            - Não é justo?
            - Justo é, mas justiça não existe quando o assunto é Deus!
            - Verdade! Diga-me, o que você faz no paraíso? Deveria estar no inferno, não?!
            - Eu sempre fui sincero comigo mesmo, seja também! – Disse e sumiu o velho Charles Bukowski.
            Quando dei por mim, após o papo com o Buk, vi braços alvos me envolverem, um hálito ácido perto da minha face, um corpo rijo e seios consistentes tocarem meu peito. Perguntei o nome dela. Ela me disse que era Carla. Retruquei dizendo Thiago, no que imediatamente ela me disse Érika. Pensei comigo mesmo que ela tinha dupla personalidade. A Carla, uma safada libertina e a Érika, a parte mais doce, mas de um doce apimentado. Então lhe disse que meu nome era Carlos, no que ela respondeu Verônica. Fiquei puto de tédio e tomei a cintura dela. Ela grudou no meu pescoço, pudia sentir seu corpo junto ao meu. Ela ofegava, quase gemia a danada, só com um beijo.

            Éh, Buk, me dei bem! Botei no rabo dela, seu puto!

terça-feira, 23 de abril de 2013

Reflexões de uma abduzido - Capítulo I

Era um domingo esquálido, de um frio envergonhado que se mostrava incapaz de mostrar toda a sua fúria. O Sol apenas iluminava. Eu ainda estava cambaleando, encontrava-me um tanto torpe por conta da boemia do sábado passado, a madrugada do sábado e suas estrelas apagadas. Muitas cervejas e risadas, em seguida a solidão de uma cama vazia. O normal, o certo, o irremediável! Dias atrás fui convidado a participar de uma festa de música eletrônica. Detestei a porra do convite com a mesma intensidade que detestava música eletrônica. Batidas esquizofrênicas programadas por um software que fazia as vezes do músico. Sempre achei artificial! Mas, nestes dias incompreensíveis me encontro numa fase em que o “sim” é a única resposta. Decidi entrar de cabeça nas oportunidades e depois encarar de frente as conseqüências, sejam elas físicas ou psicológicas. Bom, em resumo, fui. Agora vou contar como seu deu a porra toda!
            Cheguei ao lugar repleto de preconceitos e amarras. Deparei-me logo de cara com pessoas felizes, bonitas e jovens. Achei ainda mais artificial, um paraíso de pessoas se movimentando como retardados. Artificial. Mas o artificial pode vir a conotar uma série de significados. Depende do ponto de vista, sempre depende disso! Não era uma casa de shows, parecia-me mais uma chácara no meio do nada. Enfim, perguntei aos meus amigos que horas aquilo tudo terminaria para que pudéssemos simplesmente tomar uma cerveja gelada, um uísque barato e nos embriagarmos como sempre fazíamos. No que eles me responderam que terminaria por volta das dez da noite. Quase tive um acesso de ódio. Um ódio mortal daqueles dois belos representantes da pior espécie de filhos da puta! O que eu faria durante todo aquele tempo em meio a pessoas artificiais e obscenamente opulentas? Decidimos tomar uma catuaba. Aliviou um pouco a minha tensão, mas o ódio continuava intenso.
            Fui pra perto da caixa de som, uma furiosa caixa de som que vinha acompanhada com dois telões de led. O telão transmitia um labirinto e aludia a alguém que sofria uma perseguição e se perdia em meio às inencontráveis saídas. Alguém me soprou próximo ao ouvido que a música era um quebra cabeças. Quis virar de imediato com o punho cerrado a voar certeiro de encontro ao nariz do safado que me assoprou tamanha estupidez, mas me contive.
            Num dado momento, ouvi uma conversa entrecortada de dois indivíduos:
            - Agora que você tomou e só esperar! Disse um deles.
            - Esperar o quê? Retrucou o outro.
            - Esperar ficar fritinho, como se fosse um ovo numa frigideira! HAHAHAHA...
Dirige-me de imediato aos representantes de pelos-de-rato-e-filho-da-puta dos meus amigos e perguntei que história é essa de fritar. Um deles me respondeu, simplesmente, com ares de quem sabia o que estava dizendo e já esperava pela minha pergunta:
            - Exatamente!
            Decidimos então tomar mais uma cerveja e uma catuaba para dar uma aquecida. Um dos meus amigos algozes me ofereceu um comprimido. Pensei comigo mesmo que aquilo significava um pedido de desculpas por ter me colocado naquela fria, sabia que o ódio consumia cada fibra do meu corpo e sabia que de uma hora pra outra uma dor de cabeça frenética engoliria cada um dos meus preguiçosos neurônios. Ele me entregou e disse:
            - Tome na hora que for necessário - disse de maneira leve, simples, com ares de conselho. Conclui que esse cara, meu amigo do peito, não passava de um exótico espécime de babuíno do rabo vermelho em extinção no Sirilanka.
             Guardei o comprimido e esperei a dor de cabeça vir ao meu encontro. Nesse momento tive uma ideia genialmente estúpida: tomar o comprimido antes para que os anticorpos já estejam em modo de ataque quando a temível dor de cabeça vinda das terras dos gigantes situadas no alto da estratosfera terrestre aparecer. Tomei usando a catuaba pra fazer descer o meliante. Desceu. Sentei. Esperei alguma reação, um alívio, um suspiro, um peido, sei lá, qualquer coisa. Foi aí que tive a impressão de que aumentaram o som. Praguejei as próximas dezenove gerações daqueles veados. Alguma força ulterior me fez querer presenciar os labirintos esdrúxulos dos telões de led. Felicitei-me com as novas animações. Agora a alusão labiríntica não era de perseguição e sim de procura, como uma caça ao tesouro. Eu me sentia exatamente assim, procurando algo, talvez uma sensação. Queria poder participar da mesma vibe que aqueles retardados artificiais. Queria artificializar. Decidi deixar a coisa acontecer por si só. Permaneci acompanhando os desdobramentos do telão enquanto aspirava aquela sensação atípica na minha vida, felicidade!

segunda-feira, 8 de abril de 2013

Especial "Texto de número 50"


Na segunda-feira, trinta de julho de dois mil e doze, dia de clima ameno, desses que não se sabe como nem por que terminam, de tanto que as horas parecem não quererem se desprender dos minutos, estes dos segundos e estes outros dos milissegundos num arrastado prolixo de dia que parece estar indeciso se, afinal, deixa ou não o sol ceder o seu imponente e indiferente lugar a diáfana lua, inspiradora dos românticos incorrigíveis, se é que eles ainda existem, como reclamam as mulheres, ainda mais numa segunda-feira como essas onde a Terra parece ter se desgarrado da Galáxia e agora anda a vagar a procura de uma nova estrela para orbitar com os seus movimentos de rotação e translação; aconteceu, dizia, nesta segunda-feira de hercúleas horas, o meu primeiro contato com a morte! Por esses dias, como que por obra de um assustador acaso, andava a ler ‘As intermitências da morte’, do Saramago, livro que trata de um país fictício, o corriqueiro na obra deste autor, onde tudo por mais realista e palpável que seja, consegue manejar o absurdo com os dedos racionais da filosofia. Nesta nação a morte deixou de dar o ar de sua “graça”. Daí, uma série de acontecimentos absurdamente possíveis diante do absurdo primordial proposto enredou a trama da qual, viu-se num final não menos pitoresco do que a “ausência da morte”, a personagem central e ‘encarnada’, vejam só, como o “Verbo Encarnado”, era a própria morte, com ‘m’ minúsculo mesmo, porque a morte da qual se tratava, era dessas que se nos acometem aqui e ali e, por vezes, nem nos damos conta, essas mesmo que são como ponto final de uma oração, onde, na construção do sentido, não é mais importante que as vírgulas que o precederam. Era isso. A morte era uma personagem, travava diálogos com a sua foice, ou gadanha, como preferirem, mas era isso, agora posso muito bem entender: a morte era a personagem central! E naquela segunda-feira me deparei com a morte. Neste dia não me dei pelo assustador acaso, mas, na intranquilidade dos dias que se sucederam, e me parece que as principais histórias que vêm colorir esse grande imaginário que é a linha do tempo da humanidade são forjadas no fogo da intranquilidade de seus autores, mas, dizia eu, nos acontecimentos que se sucederam nos dias posteriores ao meu encontro com a morte, que, aliás, vocês não perdem por esperar, a não ser um pouco de paciência; bom, nesses dias intranquilos pensei, como o Saramago, nas coisas mais absurdas, mas, no que tange ao absurdo ser o ponto de vista às avessas do normal, não seria menos racional, dadas as contextualidades, às intercontextualidades e às intermitências não da morte, porque, apesar de naquele dia eu ter me encontrado com essa senhora gorda vestida de preto como já nos preparou Proust, mas às intermitências da vida, porque a minha mesmo, depois deste relato clean como todos podem, desde já, perceber, não terá ponto final, ou morte com ‘m’ minúsculo.

            Por agora vamos dar voz a essa história e deixar a prolixidade junto da morte, essa mesma que irá se encontrar comigo no decorrer das próximas páginas. Deixemo-las aqui devidamente engavetadas e deitemos mão ao início do fio dourado da minha vida.

Chamo-me Carlos de Deus Brasileiro, filho de Maria Isalina Brasileiro e Inácio de Deus Brasileiro. Nasci no ano de mil novecentos e oitenta e nove nesta sua mesma cidade. Sou de origem nordestina, visto que meus pais são filhos do chão gretado do cariri paraibano. Todos os meus dilemas e traumas da infância, como não poderia deixar de ser, condensaram-se na figura esguia de Pai. Apesar de sua estatura ínfima e de seus trejeitos sempre expressivamente perplexos, como se algo inoportuno fosse, de um segundo pra outro, o assomar de corpo inteiro, o que muito pouco bastaria, Pai, mesmo assim, sempre me fez temê-lo. Ora, afinal só poderia ser a ele, meu irrequieto pai, filho do chão gretado, nascido e criado no período turbinar dessa metrópole mesma que a todo o momento parece nos querer engolir, que eu deveria honrar com o já celebre posto de meu castrador. Como se pode não rezar antes de dormir, como se pode, Deusito Brasil - a forma que, carinhosamente, me alcunhava – quero que todas as noites, antes de cobrir-se com seus sedosos edredons, clame a nossa senhora, virgem santíssima, que lhe interceda a Deus, pela sua proteção; e continuava, Muito me admira o seu aspecto assustado, de quem herdou isso, só pode ser da família brejeira de vossa mãe, porque a mim, teria que ter herdado a coragem; temor só mesmo à Deus Pai, num viu. E dizia tudo isso numa rispidez imagética, vejam só, porque por mais que Pai se esforçasse em parecer durão, por mais que se esforçasse em parecer Pai, não conseguia fazer se perderem os intermitentes tremeliques que o faziam  levantar de leve a sobrancelha. Aliás, que sobrancelha, juntava-se uma a outra, uma monocelha medonhamente crispada. Afinal, dizia, era somente essa figura que poderia vir um dia a me castrar. Mãe era pra mim a Gioconda, a candura, a salvadora dos aflitos, a cordeira de deus, a ressuscitadora dos mortos, nascida do colo mais puro! Mãe era a verdadeira rainha do lar. A figura esguia e perplexa de Pai era totalmente o inverso da postura de Mãe, quem entrasse em casa quando ambos estivessem sentiria a diferença que nada tinha de sutil. Mãe parecia ter nascido diretamente de algum romance de Flaubert, enxergava a vida como ela é, sem muitos rodeios e vírgulas. Mãe era nelsonrodriguiana. Suas frases sempre continham ponto final. Era a responsável por trazer Pai de volta a terra quando este sofria alguma espécie de frêmito horrível mediante a iminência dos órgãos públicos virem exigir explicações sobre a posse do terreno em que, de forma imponente, se levantava a nossa humilde, porém não pouco real, casa. Pai não possuía as escrituras. Mas essa parte será mais bem contada com desenrolar de nossa história.

Pai, nunca entendi o porquê, sempre explicitou seus pesares a Deus pela má fortuna de me ter como filho, chamava-me palerma e, por vezes, maricas. Certo dia interpelou-me com veemência, Como poderia tal caso herético, Deusito, disse certa vez muitíssimo irritado, Pretendo inscrever-lhe numa dessas academias que estão borbotando em todos os lugares da cidade como igrejas evangélicas, o povo daqui está a cada dia mais afeminado, mais querendo parecer-se com o povo da tevê, veja só, mas, preste atenção molecote, não desvie o olhar de vosso pai, vou lhe inscrever numa dessas lutas de defesa pessoal, num sabe. Embasbaquei-me, como assim defesa pessoal, Ontem de tardinha depois da escola, contou Pai, conversei com seu primo, aquele cabeção do Gilsinho, disse que o senhorito anda fugindo dos brigões da escola, como pode ser isso, me diga, Não, Pai, por favor, como pode acreditar nesse chato do Gilsinho, no recreio passo o meu tempo a ler os parcos livros da biblioteca da escola, como a merenda que mãe põe na minha lancheira na mesinha da própria biblioteca, não me meto com ninguém na escola – tentei em vão defender minha honra, mas Pai estava decido, Ora, pois, não quero filho maricas, rato de biblioteca, lendo novelinhas na escola, quero cabra macho, bom pra lidar com a dureza da vida, porque a vida é dura pra todo mundo, e não haverá de ser diferente com o romanceirinho, Mas, Pai, eu sou cabra macho feito o senhor, ajudo mãe nos afazeres da casa, Pois quero é isso mesmo, e quero que no recreio vá brincar com as outras crianças de sua idade, deus nosso senhor nos privou dos deleites do Éden por conta de nós mesmos e nos disse que deveríamos nos esfolar de trabalhar para conseguir o pão de cada dia, todos os dias, incessantemente, porque a maldita da Eva nos comeu aquela fruta pecaminosa, aprenda com isso e não coma das frutas pecaminosas da biblioteca, quero que conviva com seus colegas de escola e não fuja de briga caso aconteça. Pai falava tudo isso e eu percebia que sempre desviava o olhar, ficava de esguelha com o teto, fiquei com um medo ainda maior dele, E fique o senhorito romacerinho sabendo, seu Deusito, que, se apanhar de algum de vossos pariceiros na escola, leva uma surra de vara em casa assim que chegar de lá!

 

            É claro que eu não deixei de frequentar a biblioteca da escola, parca na bem da verdade, mas ainda assim se tratava de um mundo descoberto havia pouco tempo, que me encantou profundamente. No começo, como em todos os casos, foi bem difícil andar de um lado a outro portando um pesado dicionário, um dos poucos que dispunha a biblioteca, de capa dura, guarnecido de imagens e notas literárias explicativas dos termos. Essas notas foram as responsáveis por me fazer arder de desejo por essa tal de Literatura Brasileira, reinava nessas notas, quase sempre, o tal do Machado de Assis com o tal do Dom Casmurro. Tinha um primo mais velho que chamava a todos de casmurro. Esse primo era um tanto quanto desmantelado, usava roupas larguíssimas e camisetas estampadas com o rosto daquele heroi jamaicano, o Bob Marley! Bom, seguindo em frente sempre, como dizia, era sempre o Machado de Assis que reinava nas notas explicativas dos verbetes no dicionário e, sendo assim, massacrado pela infâmia de nunca ter lido esse Dom Casmurro, essa Capitu e esse tonto do Bentinho (sabia o nome das personagens, pois tinha lido uma sinopse rasteira numa das revistas, que eram também poucas, da biblioteca), resolvi perguntar à bibliotecária, uma senhora de grossos pelos nos braços e lentes dos óculos, cabelos presos em coque no cucuruco da cabeça, como dizia e fazia a minha avó, se ali eu conseguiria encontrar o Dom Casmurro – perguntei de boca cheia, orgulhoso, provavelmente eram poucos os alunos na história daquele colégio que tinham perguntado de um romance de tamanha importância na nossa literatura. De muita má vontade, a bibliotecária me informou que sim, tinha o exemplar, Um pouco mais de destreza da vossa parte para procurá-lo nas estantes e tenho certeza, o encontrará! Falou sem botar os olhos em mim, como se nem desse pela minha presença. Que bruaca essa dona! Possui um cargo etéreo, de guardiã de livros e nem se apruma para fazer jus a posição que ocupa. Irritei-me profundamente com o mau comportamento da peçonhenta e lhe proferi um “Obrigado” pausado e repleto de dispauterados rancores nas entrelinhas! Ela não percebeu, provavelmente, e a mim resignou a tarefa de encontrar aquele título nas poucas estantes de madeira fedorenta e de aspecto horrivelmente encanecido, não seria lá dos trabalhos mais onerosos e brutais. Deixei a despeitada lá no balcão curtindo a sua arrogância e me embrenhei na procura dos olhos de ressaca de Capitu. Acabei encontrando numa estante dos fundos, acho que a mais velha de todas e, como seria típico ou propriedade de tudo que é enrugado, a mais malcheirosa! Fiz o empréstimo para levar o livro pra minha casa. A chata da bibliotecária fez a minha comanda, procurou o meu cadastro no ficheiro, o que não foi nada difícil, visto que eu era um dos poucos frequentadores daquele ambiente velho e sábio, como seria típico e propriedade de tudo que é enrugado.

 

            Estava em êxtase! Já havia enfrentado leituras que eram verdadeiras batalhas, aqueles contos infanto-juvenis, sempre munido do meu séquito mais importante, o pesado dicionário de capa dura que continha figuras e notas literárias exemplificativas. Voltava pra casa serelepe, ansioso por, de uma vez por todas, me deliciar com uma leitura que em tudo quanto era revista de biblioteca dizia ser “um clássico de nossa literatura”! Cheguei em casa e qual não foi o meu desespero ao deparar-me com Pai, com as chaves do velho Chevet nas mãos, Vamos para academia, Deusito, hoje é a sua primeira aula de Karatê Shotokan!

 

            De nada adiantaram os meus dramalhões protestos repletos de lágrimas, lamentações e rangeres de dentes! Pai, com aquele ar assustado que sempre me botou a tremer os camibitos, pediu-me que tomasse mão da sacola que estava jogada no sofá, onde dentro continha o famigerado kimono japonês e uma faixa branca. Puxou-me pela gola da camiseta – e eu ainda estava enfezado, com cara de poucos amigos, tentando, em vão, enrijecer os joelhos -, no que fui forçado, assim, a adentrar àquele recinto mal cheiroso de graxa, óleo de motor e peixe que era o interior do guerreiro Chevet. Digo guerreiro porque, aquele sim, já passou por pouquíssimas, mas não menos boníssimas. Certa vez, Pai, foi até Mairiporã pescar de tarrafa, aprendizado oriundo das raízes nordestinas dos açudes, numa área preservada e vigiada pela polícia ambiental. Para tanto, embrenhou-se no mato dirigindo o guerreiro Chevet que tinha uma cor entre um cinza-macarrão azedado e um alaranjado-ferro oxigenado o que lhe garantiu máxima eficiência nas artimanhas da camuflagem clandestina, se é que em algum caso poderá não ser assim. Quando saiu na função de jogar a quirela Multiplicadora nas margens do lago, a fim de atrair os peixes (rompante maldito dos homens em quererem fazer as mesmas estripulias que seus deuses), um macaco bugio, desses que soltam uivos de enorme estridência, entrou no velho Chevet, visto que Pai, não sei se pela natureza assustada ou se pela ânsia vívida dos homens impertinentes, acabou por esquecer um dos vidros de uma das portas do carro de todo descido. O macaco fez de um tudo lá dentro, como era de se esperar. Pululava feito os saltimbancos dos livros infanto-juvenis que eu andava sempre por ler, rasgou e jogou fora a espuma dos bancos, defecou, mordeu o volante, babou no câmbio e trincou o vidro traseiro. Naquele dia a pescaria de Pai não foi das melhores, apenas algumas bobas piabas e outras duas cascudas tilápias descarnadas que, no fim, precisou utilizar para seduzir o velho bugio que se recusava, impertinente bicho do mato que era, a sair do Chevet. Pai perdeu as tilápias e a milagrosa quirela Multiplicadora de nada serviu no final das contas.

            Mas, como dizia, fui imposto a participar da minha primeira aula de karatê shotokan. Foi lá que conheci duas pessoas importantes para esta história. Ou não, afinal, tudo tem que possuir certos haveres e deveres com a morte. A vida, curta porque doada, nada mais é que uma sucessão de eventos justapostos onde uma fagulha de segundo para mais ou para menos pode ser responsável por mudar inteiramente o final de qualquer história! Bom, como dizia, o leitor não repare, por favor, nesses sucessivos desvios da história, afinal é sempre bom poder respirar um pouquinho dessas nossas vãs filosofias, digo vãs porque já nos apropriamos tanto desses pequenos simulacros de vida próprias de nossas várias relações interpessoais que já se transformou em vital o ato de monologarmo-nos as mais esperançosas frases feitas e clichês que sempre foram ditos e nunca empregadas na realidade; droga, aconteceu de novo, dizia eu, afinal, que na academia de karatê shotokan conheci o Baldoliro e a Katiana...

sexta-feira, 5 de abril de 2013

Dissertação, o velho Buk e o papel da Literatura

DISSERTAÇÃO
Língua Portuguesa III
Organização e encadeamento de ideias.

Hoje é sexta-feira, o clima na cidade é sempre o de expectativa pela chegada eminente do fim de semana. Tenho alguns livros espalhados pela mesa. Vejamos... Bukowski, Bolaño, Alan Pauls e Vinícius; os de sempre! Preciso escrever uma dissertação para a aula de LP III.
Já sei, vou escrever sobre o Bukowski. Pausa para uma pesquisa...
Pronto, li algo a respeito. Mais sobre a opinião da crítica literária na época do boom da sua literatura. Sobre a óbvia comparação que fariam dele com Jack Kereouc – e que, por sinal, o velho Buk detestava. Afinal, a libertinagem dele era machista, enquanto que o discurso escatológico dos beets era mais liberal e seus temas prediletos eram viagens e o jazz, enquanto que Buk sempre preferiu a verdade do cotidiano da classe operária. A forma de encarar a vida é amarga nos contos de Charles. O sexo e a bebida são como fugas, simples e eficazes, de uma organização social hipócrita e de guerras marcadas pela busca implacável do poder.
Tudo bem, a pesquisa surtiu efeito, mas é necessário escrever algo mais específico. Talvez sobre a escatologia na obra de Charles Bukowski, ou sobre o caráter autobiográfico de sua obra, ou até mesmo sobre a figura masculina e os tipos burlescos de suas personagens centrais. Não sei... A autobiografia expressa em sua obra me parece legal. Posso até fazer uma brincadeira e encarnar o velho Buk – velho safado! -, dando a entender que a dissertação é escrita por ele mesmo. Mas, não. Dissertar é coisa séria, é escrever e emblematizar todas as três fases do signo, como disse o doido do Pierce. E, afinal, isso aqui é um trabalho acadêmico. Aliás, Charles mandava o academicismo e a adequação ao modelo literário vigente às picas. Detestava rótulos! Posso escrever sobre isso também. Mas prefiro ir a fundo à questão, quero falar sobre ele, Buk! Sua poesia, contos e romances são sinceros. Para a maioria dos escritores, escrever é uma necessidade no sentido mais intenso que essa palavra possa expressar; como água no deserto após horas e horas de sede e calor! E isso se torna vivificante para o leitor despreparado que se depara com a obra de Charles Bukowski. Ele escrevia sem almejar status nenhum, escrevia porque, talvez, fosse necessário, para jogar panos quentes na sua solidão. Algo que, provavelmente, o álcool e as corridas de cavalo não faziam totalmente.
É sobre a expressão de sua condição e veracidade de sua obra que quero falar. E, talvez, traçar uma perspectiva de autores mais sinceros, mais comprometidos com a verdade. Ficção é e sempre será uma alegoria, uma metáfora da alma humana. E o velho Buk fez isso como poucos.
Vamos ao texto! (Sem pensar que já nessa divagação toda aqui acima possa ser, veja bem, possa ser que tenha dissertado).

A DISSERTAÇÃO

            Apresentação do tema: Charles Bukovski e o caráter autobiográfico de sua obra. A limpidez suja da sua condição expressa sem vírgulas e meias palavras.
            Desenvolvimento I: A crítica, a opinião. O que normalmente se espera dos escritores. O que diziam de Charles. Literatura comercial.
            Desenvolvimento II: O papel da literatura versus a expressão do autor, tentando realizar aqui um contraponto com os argumentos do Desenvolvimento I.
            Conclusão: A coragem do velho Buk em ser autêntico diante de uma nova ordem social que clama por chavões que entronizem seus modelos consumistas de vida.
O título vem sempre por último, sempre!
  



O Velho Buk e o papel da Literatura
Tratar de literatura é sempre prazeroso, mas torna-se libertino e obsceno (com o perdão à possível redundância, mas libertinagem e obscenidade querem apenas se casar neste contexto) quando a referência é Charles Bukowski. E se torna um soco no pé do estômago quando encaramos a veracidade da sua obra, a sua falta de meias palavras e a sua truculência crua e inequívoca, que expressou muito bem toda uma classe, um grupo significante de pessoas, aqueles que ficam à margem.
Os críticos de literatura, alguns, pelo menos, querem elencá-lo ao lado de Kereouc e os beat’s, justamente por conta do jeito despojado de escrever, da bebida, a sensação de escória que o submundo descrito pode proporcionar ao leitor. Aliás, Bukowski passou muito tempo para ser descoberto, para ter a sua literatura aceita. Muito por conta de dois fatores: o primeiro é que a elite quer arte e inovação e excelência na norma. Outra, porque cresce, desde o pós guerra o interesse em livros comerciais e em literatura de auto-ajuda. E, nesses dois aspectos, o velho Buk em nada pode contribuir, segundo os críticos. O que se espera dos escritores são os traços estilísticos, a construção narrativa, um tema atual e aplicável à sociedade e, claro, o lucro.
Isso nos faz pensar, em contrapartida, no papel da literatura. Lembremos aqui da entronização de Homero que, com literatura, trouxe a luz da metáfora para a construção do pensamento filosófico na antiguidade clássica. Charles nunca se preocupou com o academicismo, nem com a escola literária vigente, nem com os novos meandros estilísticos da literatura. Preocupou-se apenas em expressar, em descrever algo que fosse seu, que lhe pertencesse. Ambiente que se aproxima de outros dois autores, também norte americanos, Henry Miller e John Fante – escritores do submundo. Outra parte da crítica traça Charles como o escatológico, o machista, o anarquista, o politicamente incorreto. Seria correto afirmar tais adjetivos, mas até onde podemos adjetivar em se tratando de literatura?
            Devemos, sim, exaltar o velho Buk e sua coragem e nos perguntarmos, como ele quem é que deu a referência para sermos taxados de loucos. O submundo existe, bem como a exaltação à opulência e o incentivo à conduta consumista. Charles Bukowski sempre esteve à margem disso, e a sua literatura expressou, informou o mundo disso! O caráter autobiográfico de Bukowski existe em todos que se propõem à escrever ficção, porque as palavras não se dissociam dos dedos do autor e nem de suas experiência. Talvez, em Bukowski, devamos repensar o papel social e artístico da literatura.

quinta-feira, 4 de abril de 2013

Mordendo a gola da camisa

Creio que a pessoa que se comprometa a escrever uma História da Fé se frustrará. Não porque saiba diante mão que não chegará a lugar algum, mas, e isso é o que podemos não chamar de fundamentalismo, se deparará, intrigado, diante de uma ambivalência desleal. Ou melhor, diante de uma bifurcação de sinuosas veredas: a humanidade é um conglomerado dividido entre evolucionistas e criacionistas. E ponto. E pronto.
      Ponto porque acaba nisso. Ninguém se interessará daqui por diante em divagar sobre os misteriosos planos que as entidades sobrenaturais oniscientes e onipresentes têm para os nossos pescoços. Muito menos os evolucionistas querem outra coisa senão esperar; adaptam-se e esperam, eis o que fazem.
      O que aconteceu com Deus é o inverso do que ocorreu com os meios de comunicação de massa. Deus não se adaptou e hoje foi engolido. Talvez esteja preso na caixa de Pandora, junta da esperança. Continuamos deflagrados por esse mal, a esperança! Somos indivíduos que esperam. Ponto para os evolucionistas.
     Pronto porque estamos preparados para o que der e vier, mesmo que não saibamos o que dará e o que virá. Atiramos de forma assodada no escuro. Já passou o Hitler, o Allende, o Géiser, o Mussolini, o Lênin... Lutou-se bravamente contra a ordem e a moral impostas. Hoje somos crianças fantasiadas de super-man. Fomos banidos de nosso planeta original para lutar contra um mal invisível. Tudo o que é abstrato é invisível. Ser invisível é não ter forma. Deus é invisível, o prazer também. Deus e o profano guerreiam e a dor triunfa. E a dor torna-se prazer.
     Uma História da Fé tem pano pra manga! Talvez a pessoa que se comprometa com essa odisséia (e não digo odisséia por acaso, tratar da fé é voltar no tempo, sim!) traçará uma perspectiva ímpar sobre o futuro. Talvez ele perceba que suas palavras são livres. Perceba que elas não se enquadram em ideologia nenhuma. Talvez perceba que escrever é ser imparcial e preciso, dinâmico e envolvente (preciso urgente de um cigarro!), talvez a pessoa que se comprometa a escrever a História da Fé se torne incrédulo e sinta dor. A ponto de morder a gola da camisa.