Um
ponto depois, ainda um tanto aturdido pelo pequeno relacionamento dos olhares,
o meu e o da mulher de olhos vazios, desci. Caminhei alguns minutos até chegar
ao escritório, queria fumar. Precisava do acalento, da mansidão, da anestesia
que o tabaco e sua fumaça acometem aos nervos. Não fumei, preciso parar de me
enganar, preciso ser sincero. Creio que os fumantes são pessoas que, de alguma
forma, querem esquecer pequenas frustrações. Fumar é algo prazeroso, te dá uma
sensação de gratificação.
Logo que cheguei corri a escrever
essas impressões. É necessário tudo isso, esse registro pormenorizado dos
pensamentos, das reflexões. Escrever é como fotografar a alma e, além do mais,
na tentativa exasperada de vencer a hipocrisia, creio que as reflexões sejam as
mais puras manifestações da sinceridade. Tudo isso aqui é muito íntimo, é muito
meu.
Eu ainda não sei bem definir e
organizar as palavras para descrever o que se deu com a mulher magra hoje no
ônibus. Causou-me uma forte impressão, disso não tenho dúvidas. Por um momento
foi reconfortante, depois uma sensação asquerosa de fraqueza, como se fosse um
só. Ser um só é mais do que ser solitário. Ser uma pessoa solitária é um mero
status, eu me vi, diante daqueles olhos vazios, incapaz de perceber o que eles interpretavam,
como um só. Ser um só é ser opaco, um ente de barreiras trincadas.
Eu queria lembrar tudo o que vivi há
duas semanas. Não me sinto em condições de pormenorizar eventos passados,
talvez seja humanamente impossível. Gostaria, ao menos, de relembrar os olhares
que travaram relações com os meus. Foi uma rotunda experiência com a mulher
magra no ônibus. Seu aspecto era aterrador e seus olhares vazios. Parece-me uma
boa perspectiva essa de catalogar todas as experiências oculares. Eu viveria,
assim, de pequenos acontecimentos, de pequenas sensações, de pequenos momentos
de asco e júbilo e assim, quem sabe, poderia escrever um Ensaio sobre a visão,
ou uma História das pequenas sensações. Divago, claro. Quero apenas encontrar
motivos substanciais para essa minha pequena existência opaca, sem luz, sem
vibração, repleta de máculas, de nódoas, de mentiras, de ações involuntárias,
de abjetos conceitos.
Creio que o importante agora seria
continuar a registrar os acontecimentos. Adentrei ao escritório, antes havia
cumprimentado o rapaz da guarita no estacionamento, murmurei um bom dia geral a
todos na repartição, sentei, liguei o computador, esperei que ela iniciasse e
já aqui me sentia profundamente fatigado – ciente de tudo que estaria por vir,
talvez. Dou-me conta de que este relato é inútil. Aliás, este é o único relato
possível. Todos os dias são iguais. O certo, então, seria compenetrar-me e
experimentar todos os olhares, mas, para tanto, precisaria de uma licitação
prévia de todos os gêneros humanos. Quantas vidas eu não salvaria. Eu traria
luz a muitas pessoas que buscam, como eu, preencher um vazio que mais parece um
buraco negro! Leituras já não servem mais agora, elas têm o mesmo efeito que os
cigarros. É difícil lutar contra toda essa insuficiência.
Continua...