sexta-feira, 4 de janeiro de 2013

Olhares - parte 2 (Inspirado em A Trégua, de Mario Benedetti)


Um ponto depois, ainda um tanto aturdido pelo pequeno relacionamento dos olhares, o meu e o da mulher de olhos vazios, desci. Caminhei alguns minutos até chegar ao escritório, queria fumar. Precisava do acalento, da mansidão, da anestesia que o tabaco e sua fumaça acometem aos nervos. Não fumei, preciso parar de me enganar, preciso ser sincero. Creio que os fumantes são pessoas que, de alguma forma, querem esquecer pequenas frustrações. Fumar é algo prazeroso, te dá uma sensação de gratificação.
            Logo que cheguei corri a escrever essas impressões. É necessário tudo isso, esse registro pormenorizado dos pensamentos, das reflexões. Escrever é como fotografar a alma e, além do mais, na tentativa exasperada de vencer a hipocrisia, creio que as reflexões sejam as mais puras manifestações da sinceridade. Tudo isso aqui é muito íntimo, é muito meu.
            Eu ainda não sei bem definir e organizar as palavras para descrever o que se deu com a mulher magra hoje no ônibus. Causou-me uma forte impressão, disso não tenho dúvidas. Por um momento foi reconfortante, depois uma sensação asquerosa de fraqueza, como se fosse um só. Ser um só é mais do que ser solitário. Ser uma pessoa solitária é um mero status, eu me vi, diante daqueles olhos vazios, incapaz de perceber o que eles interpretavam, como um só. Ser um só é ser opaco, um ente de barreiras trincadas.
            Eu queria lembrar tudo o que vivi há duas semanas. Não me sinto em condições de pormenorizar eventos passados, talvez seja humanamente impossível. Gostaria, ao menos, de relembrar os olhares que travaram relações com os meus. Foi uma rotunda experiência com a mulher magra no ônibus. Seu aspecto era aterrador e seus olhares vazios. Parece-me uma boa perspectiva essa de catalogar todas as experiências oculares. Eu viveria, assim, de pequenos acontecimentos, de pequenas sensações, de pequenos momentos de asco e júbilo e assim, quem sabe, poderia escrever um Ensaio sobre a visão, ou uma História das pequenas sensações. Divago, claro. Quero apenas encontrar motivos substanciais para essa minha pequena existência opaca, sem luz, sem vibração, repleta de máculas, de nódoas, de mentiras, de ações involuntárias, de abjetos conceitos.
            Creio que o importante agora seria continuar a registrar os acontecimentos. Adentrei ao escritório, antes havia cumprimentado o rapaz da guarita no estacionamento, murmurei um bom dia geral a todos na repartição, sentei, liguei o computador, esperei que ela iniciasse e já aqui me sentia profundamente fatigado – ciente de tudo que estaria por vir, talvez. Dou-me conta de que este relato é inútil. Aliás, este é o único relato possível. Todos os dias são iguais. O certo, então, seria compenetrar-me e experimentar todos os olhares, mas, para tanto, precisaria de uma licitação prévia de todos os gêneros humanos. Quantas vidas eu não salvaria. Eu traria luz a muitas pessoas que buscam, como eu, preencher um vazio que mais parece um buraco negro! Leituras já não servem mais agora, elas têm o mesmo efeito que os cigarros. É difícil lutar contra toda essa insuficiência.

Continua...

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