O
ano está iniciando e me sinto enjoado, com o estômago embrulhado, como costumam
dizer. Acho que comi demais na ceia das vésperas da entrada do ano. Ou, talvez,
isto a que chamo embrulho seja a náusea que me atormenta todos os dias e a cada
hora se torna maior e maior. É um sentimento, disso não resta a menor dúvida.
Um sentimento que se congela e faz queimar o estômago. Um sentimento de crueza,
de estagnação, de acontecimentos desprovidos de ares sublimes. Não sei explicar
muito bem, parece que me escapa pelos dedos a graça. A graça é a viscosidade da
vida. A graça não é um estado como costumamos chamar. Dizemos sempre “Estou em
estado de graça!” e essa palavra, graça, é proferida com um sutil entusiasmo,
como se se tratasse de algo fantástico, insondável. Proferida como uma etérea
realização.
Hoje pela manhã tomei o ônibus como
de costume, na hora costumeira. Como de costume abri um livro, um novo livro. O
ônibus levava poucas pessoas, isto não é costume.
Tinha-se percorrido metade do
trajeto quando uma mulher tomou o ônibus. Tinha o aspecto cadavérico. Um rosto
pálido, olhos vagos, insondáveis e fundos, covas nas bochechas. Cabelos negros na
altura do ombro. De uma magreza frágil, de se perceber os ossos. Bem,
tratava-se de uma visão aterradora que me fez perceber, ou melhor, sentir os
primeiros sintomas desse meu enjoo. Não porque nunca tenha visto uma pessoa tão
magra ou aterradora, mas porque me senti parte daquela magreza, me senti parte
daquele olhar insondável. Iniciamos o ano, as pessoas vestiram-se de branco,
beberam, comeram, comemoraram. Havia algo de novo no aspecto do clima, podem
entender isso? O clima não é só meteorologia, é também toda uma áurea, todo um
enlevo que nós criamos e eu podia perceber isso hoje pela manhã. Até que aquela
mulher tomou o ônibus. Eu fiquei a observá-la, ela me olhou de esguelha, num
gesto rápido do globo ocular, eu corei um pouco, tentei disfarçar, aproximei o
livro do rosto, mas a náusea passou a ser pior lá no meu embrulho estomacal e
percebi que tinha necessidade de observá-la mais. Naquele momento ela se
configurava como uma visão reconfortante pra mim. Eu me libertava dessa nova
áurea da cidade, dessa ressaca renovada de esperança. A feia constituição do
corpo daquela mulher era um poço de segurança, um ponto lúcido em meio a esse
mar do novo.
Sinto-me melhor agora que escrevo.
Escrever sobre a fealdade me parece bastante sincero. Eu quero ser sincero! Minha
vida é um mar de hipocrisia e eu me afogo todos os dias na imensidão da minha
fraqueza, da minha letargia.
Da janela do ônibus, observei as
poucas pessoas na rua. Pareceram-me desanimadas, frígidas. Acalentei-me ao
vê-las. Via-as e as enxergava, isto é um ótimo exercício aos espíritos
passionais como o meu.
A mulher de olhar vago desceu um
ponto antes de mim. Por um momento me senti abandonado. Antes de descer ela pôs
em mim seus olhos vazios, foi rápido, mas no pouco tempo que durou eu a mirei
firmemente também. Compenetramo-nos! Senti um frio percorrer a espinha quando
imaginei o que deveria passar na sua cabeça àquele exato instante, “Que rapaz
de olhos inofensivos...”
Continua...
Bela crônica!
ResponderExcluirObrigado, professor. Bom saber que sempre me prestigia com a sua leitura. Uma motivação a mais para escrever!
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