quarta-feira, 2 de janeiro de 2013

Olhares - parte 01


O ano está iniciando e me sinto enjoado, com o estômago embrulhado, como costumam dizer. Acho que comi demais na ceia das vésperas da entrada do ano. Ou, talvez, isto a que chamo embrulho seja a náusea que me atormenta todos os dias e a cada hora se torna maior e maior. É um sentimento, disso não resta a menor dúvida. Um sentimento que se congela e faz queimar o estômago. Um sentimento de crueza, de estagnação, de acontecimentos desprovidos de ares sublimes. Não sei explicar muito bem, parece que me escapa pelos dedos a graça. A graça é a viscosidade da vida. A graça não é um estado como costumamos chamar. Dizemos sempre “Estou em estado de graça!” e essa palavra, graça, é proferida com um sutil entusiasmo, como se se tratasse de algo fantástico, insondável. Proferida como uma etérea realização.
            Hoje pela manhã tomei o ônibus como de costume, na hora costumeira. Como de costume abri um livro, um novo livro. O ônibus levava poucas pessoas, isto não é costume.
            Tinha-se percorrido metade do trajeto quando uma mulher tomou o ônibus. Tinha o aspecto cadavérico. Um rosto pálido, olhos vagos, insondáveis e fundos, covas nas bochechas. Cabelos negros na altura do ombro. De uma magreza frágil, de se perceber os ossos. Bem, tratava-se de uma visão aterradora que me fez perceber, ou melhor, sentir os primeiros sintomas desse meu enjoo. Não porque nunca tenha visto uma pessoa tão magra ou aterradora, mas porque me senti parte daquela magreza, me senti parte daquele olhar insondável. Iniciamos o ano, as pessoas vestiram-se de branco, beberam, comeram, comemoraram. Havia algo de novo no aspecto do clima, podem entender isso? O clima não é só meteorologia, é também toda uma áurea, todo um enlevo que nós criamos e eu podia perceber isso hoje pela manhã. Até que aquela mulher tomou o ônibus. Eu fiquei a observá-la, ela me olhou de esguelha, num gesto rápido do globo ocular, eu corei um pouco, tentei disfarçar, aproximei o livro do rosto, mas a náusea passou a ser pior lá no meu embrulho estomacal e percebi que tinha necessidade de observá-la mais. Naquele momento ela se configurava como uma visão reconfortante pra mim. Eu me libertava dessa nova áurea da cidade, dessa ressaca renovada de esperança. A feia constituição do corpo daquela mulher era um poço de segurança, um ponto lúcido em meio a esse mar do novo.
            Sinto-me melhor agora que escrevo. Escrever sobre a fealdade me parece bastante sincero. Eu quero ser sincero! Minha vida é um mar de hipocrisia e eu me afogo todos os dias na imensidão da minha fraqueza, da minha letargia.
            Da janela do ônibus, observei as poucas pessoas na rua. Pareceram-me desanimadas, frígidas. Acalentei-me ao vê-las. Via-as e as enxergava, isto é um ótimo exercício aos espíritos passionais como o meu.
            A mulher de olhar vago desceu um ponto antes de mim. Por um momento me senti abandonado. Antes de descer ela pôs em mim seus olhos vazios, foi rápido, mas no pouco tempo que durou eu a mirei firmemente também. Compenetramo-nos! Senti um frio percorrer a espinha quando imaginei o que deveria passar na sua cabeça àquele exato instante, “Que rapaz de olhos inofensivos...”

Continua...

2 comentários:

  1. Obrigado, professor. Bom saber que sempre me prestigia com a sua leitura. Uma motivação a mais para escrever!

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