Na
segunda-feira, trinta de julho de dois mil e doze, dia de clima ameno, desses
que não se sabe como nem por que terminam, de tanto que as horas parecem não
quererem se desprender dos minutos, estes dos segundos e estes outros dos
milissegundos num arrastado prolixo de dia que parece estar indeciso se,
afinal, deixa ou não o sol ceder o seu imponente e indiferente lugar a diáfana
lua, inspiradora dos românticos incorrigíveis, se é que eles ainda existem,
como reclamam as mulheres, ainda mais numa segunda-feira como essas onde a
Terra parece ter se desgarrado da Galáxia e agora anda a vagar a procura de uma
nova estrela para orbitar com os seus movimentos de rotação e translação;
aconteceu, dizia, nesta segunda-feira de hercúleas horas, o meu primeiro
contato com a morte! Por esses dias, como que por obra de um assustador acaso, andava
a ler ‘As intermitências da morte’, do Saramago, livro que trata de um país
fictício, o corriqueiro na obra deste autor, onde tudo por mais realista e
palpável que seja, consegue manejar o absurdo com os dedos racionais da
filosofia. Nesta nação a morte deixou de dar o ar de sua “graça”. Daí, uma
série de acontecimentos absurdamente possíveis diante do absurdo primordial
proposto enredou a trama da qual, viu-se num final não menos pitoresco do que a
“ausência da morte”, a personagem central e ‘encarnada’, vejam só, como o
“Verbo Encarnado”, era a própria morte, com ‘m’ minúsculo mesmo, porque a morte
da qual se tratava, era dessas que se nos acometem aqui e ali e, por vezes, nem
nos damos conta, essas mesmo que são como ponto final de uma oração, onde, na
construção do sentido, não é mais importante que as vírgulas que o precederam. Era
isso. A morte era uma personagem, travava diálogos com a sua foice, ou gadanha,
como preferirem, mas era isso, agora posso muito bem entender: a morte era a
personagem central! E naquela segunda-feira me deparei com a morte. Neste dia
não me dei pelo assustador acaso, mas, na intranquilidade dos dias que se
sucederam, e me parece que as principais histórias que vêm colorir esse grande
imaginário que é a linha do tempo da humanidade são forjadas no fogo da
intranquilidade de seus autores, mas, dizia eu, nos acontecimentos que se
sucederam nos dias posteriores ao meu encontro com a morte, que, aliás, vocês
não perdem por esperar, a não ser um pouco de paciência; bom, nesses dias
intranquilos pensei, como o Saramago, nas coisas mais absurdas, mas, no que
tange ao absurdo ser o ponto de vista às avessas do normal, não seria menos
racional, dadas as contextualidades, às intercontextualidades e às
intermitências não da morte, porque, apesar de naquele dia eu ter me encontrado
com essa senhora gorda vestida de preto como já nos preparou Proust, mas às
intermitências da vida, porque a minha mesmo, depois deste relato clean como todos podem, desde já,
perceber, não terá ponto final, ou morte com ‘m’ minúsculo.
Por agora vamos dar voz a essa
história e deixar a prolixidade junto da morte, essa mesma que irá se encontrar
comigo no decorrer das próximas páginas. Deixemo-las aqui devidamente
engavetadas e deitemos mão ao início do fio dourado da minha vida.
Chamo-me
Carlos de Deus Brasileiro, filho de Maria Isalina Brasileiro e Inácio de Deus
Brasileiro. Nasci no ano de mil novecentos e oitenta e nove nesta sua mesma
cidade. Sou de origem nordestina, visto que meus pais são filhos do chão
gretado do cariri paraibano. Todos os meus dilemas e traumas da infância, como
não poderia deixar de ser, condensaram-se na figura esguia de Pai. Apesar de
sua estatura ínfima e de seus trejeitos sempre expressivamente perplexos, como
se algo inoportuno fosse, de um segundo pra outro, o assomar de corpo inteiro,
o que muito pouco bastaria, Pai, mesmo assim, sempre me fez temê-lo. Ora,
afinal só poderia ser a ele, meu irrequieto pai, filho do chão gretado, nascido
e criado no período turbinar dessa metrópole mesma que a todo o momento parece
nos querer engolir, que eu deveria honrar com o já celebre posto de meu
castrador. Como se pode não rezar antes de dormir, como se pode, Deusito Brasil
- a forma que, carinhosamente, me alcunhava – quero que todas as noites, antes
de cobrir-se com seus sedosos edredons, clame a nossa senhora, virgem
santíssima, que lhe interceda a Deus, pela sua proteção; e continuava, Muito me
admira o seu aspecto assustado, de quem herdou isso, só pode ser da família
brejeira de vossa mãe, porque a mim, teria que ter herdado a coragem; temor só
mesmo à Deus Pai, num viu. E dizia tudo isso numa rispidez imagética, vejam só,
porque por mais que Pai se esforçasse em parecer durão, por mais que se
esforçasse em parecer Pai, não conseguia fazer se perderem os intermitentes
tremeliques que o faziam levantar de
leve a sobrancelha. Aliás, que sobrancelha, juntava-se uma a outra, uma
monocelha medonhamente crispada. Afinal, dizia, era somente essa figura que
poderia vir um dia a me castrar. Mãe era pra mim a Gioconda, a candura, a
salvadora dos aflitos, a cordeira de deus, a ressuscitadora dos mortos, nascida
do colo mais puro! Mãe era a verdadeira rainha do lar. A figura esguia e
perplexa de Pai era totalmente o inverso da postura de Mãe, quem entrasse em
casa quando ambos estivessem sentiria a diferença que nada tinha de sutil. Mãe
parecia ter nascido diretamente de algum romance de Flaubert, enxergava a vida
como ela é, sem muitos rodeios e vírgulas. Mãe era nelsonrodriguiana. Suas
frases sempre continham ponto final. Era a responsável por trazer Pai de volta
a terra quando este sofria alguma espécie de frêmito horrível mediante a
iminência dos órgãos públicos virem exigir explicações sobre a posse do terreno
em que, de forma imponente, se levantava a nossa humilde, porém não pouco real,
casa. Pai não possuía as escrituras. Mas essa parte será mais bem contada com
desenrolar de nossa história.
Pai,
nunca entendi o porquê, sempre explicitou seus pesares a Deus pela má fortuna
de me ter como filho, chamava-me palerma e, por vezes, maricas. Certo dia interpelou-me
com veemência, Como poderia tal caso herético, Deusito, disse certa vez
muitíssimo irritado, Pretendo inscrever-lhe numa dessas academias que estão
borbotando em todos os lugares da cidade como igrejas evangélicas, o povo daqui
está a cada dia mais afeminado, mais querendo parecer-se com o povo da tevê,
veja só, mas, preste atenção molecote, não desvie o olhar de vosso pai, vou lhe
inscrever numa dessas lutas de defesa pessoal, num sabe. Embasbaquei-me, como
assim defesa pessoal, Ontem de tardinha depois da escola, contou Pai, conversei
com seu primo, aquele cabeção do Gilsinho, disse que o senhorito anda fugindo
dos brigões da escola, como pode ser isso, me diga, Não, Pai, por favor, como
pode acreditar nesse chato do Gilsinho, no recreio passo o meu tempo a ler os
parcos livros da biblioteca da escola, como a merenda que mãe põe na minha
lancheira na mesinha da própria biblioteca, não me meto com ninguém na escola –
tentei em vão defender minha honra, mas Pai estava decido, Ora, pois, não quero
filho maricas, rato de biblioteca, lendo novelinhas na escola, quero cabra
macho, bom pra lidar com a dureza da vida, porque a vida é dura pra todo mundo,
e não haverá de ser diferente com o romanceirinho, Mas, Pai, eu sou cabra macho
feito o senhor, ajudo mãe nos afazeres da casa, Pois quero é isso mesmo, e
quero que no recreio vá brincar com as outras crianças de sua idade, deus nosso
senhor nos privou dos deleites do Éden por conta de nós mesmos e nos disse que
deveríamos nos esfolar de trabalhar para conseguir o pão de cada dia, todos os
dias, incessantemente, porque a maldita da Eva nos comeu aquela fruta
pecaminosa, aprenda com isso e não coma das frutas pecaminosas da biblioteca,
quero que conviva com seus colegas de escola e não fuja de briga caso aconteça.
Pai falava tudo isso e eu percebia que sempre desviava o olhar, ficava de
esguelha com o teto, fiquei com um medo ainda maior dele, E fique o senhorito
romacerinho sabendo, seu Deusito, que, se apanhar de algum de vossos pariceiros
na escola, leva uma surra de vara em casa assim que chegar de lá!
É claro que eu não deixei de
frequentar a biblioteca da escola, parca na bem da verdade, mas ainda assim se
tratava de um mundo descoberto havia pouco tempo, que me encantou
profundamente. No começo, como em todos os casos, foi bem difícil andar de um
lado a outro portando um pesado dicionário, um dos poucos que dispunha a
biblioteca, de capa dura, guarnecido de imagens e notas literárias explicativas
dos termos. Essas notas foram as responsáveis por me fazer arder de desejo por
essa tal de Literatura Brasileira, reinava nessas notas, quase sempre, o tal do
Machado de Assis com o tal do Dom Casmurro. Tinha um primo mais velho que
chamava a todos de casmurro. Esse primo era um tanto quanto desmantelado, usava
roupas larguíssimas e camisetas estampadas com o rosto daquele heroi jamaicano,
o Bob Marley! Bom, seguindo em frente sempre, como dizia, era sempre o Machado
de Assis que reinava nas notas explicativas dos verbetes no dicionário e, sendo
assim, massacrado pela infâmia de nunca ter lido esse Dom Casmurro, essa Capitu
e esse tonto do Bentinho (sabia o nome das personagens, pois tinha lido uma
sinopse rasteira numa das revistas, que eram também poucas, da biblioteca),
resolvi perguntar à bibliotecária, uma senhora de grossos pelos nos braços e
lentes dos óculos, cabelos presos em coque no cucuruco da cabeça, como dizia e
fazia a minha avó, se ali eu conseguiria encontrar o Dom Casmurro – perguntei de
boca cheia, orgulhoso, provavelmente eram poucos os alunos na história daquele
colégio que tinham perguntado de um romance de tamanha importância na nossa
literatura. De muita má vontade, a bibliotecária me informou que sim, tinha o
exemplar, Um pouco mais de destreza da vossa parte para procurá-lo nas estantes
e tenho certeza, o encontrará! Falou sem botar os olhos em mim, como se nem
desse pela minha presença. Que bruaca essa dona! Possui um cargo etéreo, de
guardiã de livros e nem se apruma para fazer jus a posição que ocupa.
Irritei-me profundamente com o mau comportamento da peçonhenta e lhe proferi um
“Obrigado” pausado e repleto de dispauterados rancores nas entrelinhas! Ela não
percebeu, provavelmente, e a mim resignou a tarefa de encontrar aquele título
nas poucas estantes de madeira fedorenta e de aspecto horrivelmente encanecido,
não seria lá dos trabalhos mais onerosos e brutais. Deixei a despeitada lá no
balcão curtindo a sua arrogância e me embrenhei na procura dos olhos de ressaca
de Capitu. Acabei encontrando numa estante dos fundos, acho que a mais velha de
todas e, como seria típico ou propriedade de tudo que é enrugado, a mais
malcheirosa! Fiz o empréstimo para levar o livro pra minha casa. A chata da
bibliotecária fez a minha comanda, procurou o meu cadastro no ficheiro, o que
não foi nada difícil, visto que eu era um dos poucos frequentadores daquele
ambiente velho e sábio, como seria típico e propriedade de tudo que é enrugado.
Estava em êxtase! Já havia
enfrentado leituras que eram verdadeiras batalhas, aqueles contos
infanto-juvenis, sempre munido do meu séquito mais importante, o pesado
dicionário de capa dura que continha figuras e notas literárias
exemplificativas. Voltava pra casa serelepe, ansioso por, de uma vez por todas,
me deliciar com uma leitura que em tudo quanto era revista de biblioteca dizia
ser “um clássico de nossa literatura”! Cheguei em casa e qual não foi o meu
desespero ao deparar-me com Pai, com as chaves do velho Chevet nas mãos, Vamos
para academia, Deusito, hoje é a sua primeira aula de Karatê Shotokan!
De nada adiantaram os meus
dramalhões protestos repletos de lágrimas, lamentações e rangeres de dentes!
Pai, com aquele ar assustado que sempre me botou a tremer os camibitos,
pediu-me que tomasse mão da sacola que estava jogada no sofá, onde dentro
continha o famigerado kimono japonês e uma faixa branca. Puxou-me pela gola da
camiseta – e eu ainda estava enfezado, com cara de poucos amigos, tentando, em
vão, enrijecer os joelhos -, no que fui forçado, assim, a adentrar àquele
recinto mal cheiroso de graxa, óleo de motor e peixe que era o interior do
guerreiro Chevet. Digo guerreiro porque, aquele sim, já passou por pouquíssimas,
mas não menos boníssimas. Certa vez, Pai, foi até Mairiporã pescar de tarrafa,
aprendizado oriundo das raízes nordestinas dos açudes, numa área preservada e
vigiada pela polícia ambiental. Para tanto, embrenhou-se no mato dirigindo o
guerreiro Chevet que tinha uma cor entre um cinza-macarrão azedado e um
alaranjado-ferro oxigenado o que lhe garantiu máxima eficiência nas artimanhas
da camuflagem clandestina, se é que em algum caso poderá não ser assim. Quando
saiu na função de jogar a quirela Multiplicadora nas margens do lago, a fim de
atrair os peixes (rompante maldito dos homens em quererem fazer as mesmas
estripulias que seus deuses), um macaco bugio, desses que soltam uivos de enorme
estridência, entrou no velho Chevet, visto que Pai, não sei se pela natureza
assustada ou se pela ânsia vívida dos homens impertinentes, acabou por esquecer
um dos vidros de uma das portas do carro de todo descido. O macaco fez de um
tudo lá dentro, como era de se esperar. Pululava feito os saltimbancos dos
livros infanto-juvenis que eu andava sempre por ler, rasgou e jogou fora a
espuma dos bancos, defecou, mordeu o volante, babou no câmbio e trincou o vidro
traseiro. Naquele dia a pescaria de Pai não foi das melhores, apenas algumas
bobas piabas e outras duas cascudas tilápias descarnadas que, no fim, precisou
utilizar para seduzir o velho bugio que se recusava, impertinente bicho do mato
que era, a sair do Chevet. Pai perdeu as tilápias e a milagrosa quirela
Multiplicadora de nada serviu no final das contas.
Mas, como dizia, fui imposto a
participar da minha primeira aula de karatê shotokan. Foi lá que conheci duas
pessoas importantes para esta história. Ou não, afinal, tudo tem que possuir
certos haveres e deveres com a morte. A vida, curta porque doada, nada mais é
que uma sucessão de eventos justapostos onde uma fagulha de segundo para mais
ou para menos pode ser responsável por mudar inteiramente o final de qualquer
história! Bom, como dizia, o leitor não repare, por favor, nesses sucessivos
desvios da história, afinal é sempre bom poder respirar um pouquinho dessas
nossas vãs filosofias, digo vãs porque já nos apropriamos tanto desses pequenos
simulacros de vida próprias de nossas várias relações interpessoais que já se
transformou em vital o ato de monologarmo-nos as mais esperançosas frases
feitas e clichês que sempre foram ditos e nunca empregadas na realidade; droga,
aconteceu de novo, dizia eu, afinal, que na academia de karatê shotokan conheci
o Baldoliro e a Katiana...