segunda-feira, 2 de maio de 2011

O Morador de Rua

“Todos os erros humanos são impaciência, uma interrupção prematura de um trabalho metódico.” (Franz Kafka).
Como que por milagre, se é que esses existem, já que as artimanhas da natureza calam constantemente a prepotência e apriorismos humanos, me vi enxuto numa confusão mística de desapegos emocionais. Travestido de Willian Shakespeare, magnetizado no Gonçalves Dias vivi a ilusão viral do estereótipo, do convencional, do sancionado.
Aqui, perdido por essas calçadas repletas de nódoas que falam, contam histórias inteiras de vidas, marcam encontros e desencontros e são as mimeses da minha vida futura que será mais real que falsa, me transformo na coisa. Uma coisa sem nome, sem classificações, sem efeitos, sem causar preocupações ou predisposições nos empresários, médicos, advogados e filantrópicos. Já que a filantropia também é uma criação humana e a sendo, assim como tantas outras, acabou por fazer parte da sua natureza, parte de um egoísmo que a cada minuto desta minha existência fétida ganha outros sinônimos.
Deitado nesse chão duro, deixando as costas aduncas, reflito sinistramente no mal que deixei de viver aí do outro lado. Aqui sou invisível. Estou entre a linha do bem e do mal, sou neutro. Vejo-os passar todos os dias. Uns apressados, outros não. Uns distraídos, viajando em pensamentos dos quais eu já não posso ter, outros atentos aos movimentos marrons, cinzas e pretos que nos caracterizam. Os que ainda, por um fúlgido momento e sabe-se lá por qual entidade sobrenatural conseguem nos encarar ali deitados, ou de pé, ou só, ou em companhia transmitem toda a benevolência de suas incapacidades. Vocês diante de mim são incapazes. Mesmo sendo parte da rua, sendo parte da noite, do dia, do viaduto me vejo cada vez mais original, cada vez menos escravo de tudo isso que me cerca; fruto, mas não escravo.
Sinto fome e sede. Já não me cabe o direito de justiça, de vingança. No abandono eu me torno pleno, me camuflo nessa solidão alienante, nesse ultrajar do salubre. Os direitos fugiram, mas levaram consigo os deveres. Esse é o medo, a ojeriza que me distancia de vocês.
Sob meu olhar, agora sem vibrações me passam vidas pequenas, crianças crispadas pelo desleixo, pela sujeira, pela miséria. Vidas das quais se pode aprender muito. Compactuo com histórias reais, com lágrimas reais, com dores reais. Vozes lacrimosas ecoam no meu interior.  Nas ruas, por menor que seja o alimento conquistado por um, são muitos os que usufruem.
Existem os nômades, aqueles que carregam o legado da solidão e são felizes a vivenciando. Mas que carregam junto espírito nobre.
Por motivos que se tornaram alheios ao sistema fui designado a ser mais um, mais um desses milhares que tornam mais brilhantes os seus colares e relógios. A minha existência é a sua opulência. Bem assim, sirva-me de tapete e eu lhe empresto as migalhas do meu veneno.
A minha história é desprovida de importância, mas carrega muito peso em significado. Dentre todos o que mais dói é a pequenez da alma. O meu dote é caro demais, minhas mãos tortuosas são pétalas negras, das quais a noite faz emanar odor inebriante que carrega a sua consciência.
Volto agora para o quadro infame da minha, mas não mais que sua sarjeta.

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