Olá,
diário! Talvez esse tenha sido o domingo mais chuvoso por qual eu já tenha
vivido. Não porque estivesse chovendo (realmente estava), mas, pelo menos para
mim, a chuva sempre teve essa outra conotação. Os dias são cinzas, as pessoas
se enrijecem, a água, que traz coisas do ar, torna-se impertinente.
Um filósofo, não sei exatamente
qual, disse que pensar é uma ato sofrível, que requer a dor. Em dias cinzas,
refletir é um castigo. Um ato vital. Poder-se-ia dizer que divino. A reflexão
nos dias chuvosos age como deus, de forma onipresente e onisciente. Não há onde
se esconder, nem palavras suficientes para enganar ou persuadir a sua própria consciência.
Eu sofri pensando que ninguém nesse mundo, um dia, por mais íntimo que seja,
poderá vir a conhecer as profundezas do meu ser. Neste domingo de chuva e
corpos enrijecidos eu descobri, na verdade refleti e cheguei à conclusão que
ser bom é algo impossível de se conseguir. Eu venho me dedicando, meu pequeno
diário! Tento tomar as decisões mais sensatas, mais racionais. E o coração?,
pergunto-me. O que faço do meu coração? Sempre entendi que a bondade deveria
partir do coração: errado. A ideia de bondade, em si mesma, é errada. Não se
pode definir a bondade, ela não é papável, ela não se faz enxergar por todos. Uma
decisão meritória é, ao mesmo tempo, triunfal e pungente. Refleti e me senti
forçado a concluir que durante toda a minha vida nada mais fui do que um grandessíssimo
filho da puta.
Tenho um irmão usuário de crack.
Ponto final. Não sei o que vem depois deste ponto, mas o texto precisa seguir o
seu curso. Um ponto final tem a função bondosa de, apenas, delimitar as
sentenças. O que a bondade deveria se perguntar é “e o que vem depois do ponto
final?”. Eu caminhava pelas ruas, debaixo da garoa fina, só, num ermo de casas
palpitantes. As pessoas, naturalmente, estavam encerradas dentro de seus lares
a se protegerem da chuva, indiferentes aos usuários de crack da cidade. Minhas
pernas me levavam por ruas conhecidas, ruas que fazem parte das profundezas do
meu ser, muito faltava para que minhas roupas ficassem inteiramente ensopadas.
Se agora escrevo, faço-o para tentar encontrar o momento exato que cheguei a
conclusão sobre a bondade inexistente. Seria saudável que todos fizessem o
mesmo. Dediquemo-nos a entender o fio condutor de nossa existência, querido
diário. Eu pensava em meu irmão e no que ele poderia estar fazendo. Será que
chovia onde ele estava? Nesse mesmo instante das reflexões lembrei que ele
sempre fora um cara bom.
É angustiante imaginar que vivemos
cercados de pessoas, algumas poucas que honradamente chamamos amigos. Durante
toda a minha vida tive amigos, todos temos. Temos todos, amigos. Amigos, meu
diário, todos temos. Nem bons, nem ruins, apenas amigos. Amigos são palpáveis,
podemos tocá-los e, por vezes, sentir as suas dores. Percebemos quando enrubescem.
Vislumbramos os sorrisos largos e resplandecentes. Não há bondade nisso, aliás,
não há nada de abstrato nos amigos, há os vícios e as virtudes próprias de cada
um, mas não há áureas, nem auréolas.
Em algum lugar da cidade, enquanto
eu sofria a caminhar pela chuva, esvaia-se a vida de um cara bom.
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