domingo, 17 de março de 2013

A bondade



Olá, diário! Talvez esse tenha sido o domingo mais chuvoso por qual eu já tenha vivido. Não porque estivesse chovendo (realmente estava), mas, pelo menos para mim, a chuva sempre teve essa outra conotação. Os dias são cinzas, as pessoas se enrijecem, a água, que traz coisas do ar, torna-se impertinente.
            Um filósofo, não sei exatamente qual, disse que pensar é uma ato sofrível, que requer a dor. Em dias cinzas, refletir é um castigo. Um ato vital. Poder-se-ia dizer que divino. A reflexão nos dias chuvosos age como deus, de forma onipresente e onisciente. Não há onde se esconder, nem palavras suficientes para enganar ou persuadir a sua própria consciência. Eu sofri pensando que ninguém nesse mundo, um dia, por mais íntimo que seja, poderá vir a conhecer as profundezas do meu ser. Neste domingo de chuva e corpos enrijecidos eu descobri, na verdade refleti e cheguei à conclusão que ser bom é algo impossível de se conseguir. Eu venho me dedicando, meu pequeno diário! Tento tomar as decisões mais sensatas, mais racionais. E o coração?, pergunto-me. O que faço do meu coração? Sempre entendi que a bondade deveria partir do coração: errado. A ideia de bondade, em si mesma, é errada. Não se pode definir a bondade, ela não é papável, ela não se faz enxergar por todos. Uma decisão meritória é, ao mesmo tempo, triunfal e pungente. Refleti e me senti forçado a concluir que durante toda a minha vida nada mais fui do que um grandessíssimo filho da puta.
            Tenho um irmão usuário de crack. Ponto final. Não sei o que vem depois deste ponto, mas o texto precisa seguir o seu curso. Um ponto final tem a função bondosa de, apenas, delimitar as sentenças. O que a bondade deveria se perguntar é “e o que vem depois do ponto final?”. Eu caminhava pelas ruas, debaixo da garoa fina, só, num ermo de casas palpitantes. As pessoas, naturalmente, estavam encerradas dentro de seus lares a se protegerem da chuva, indiferentes aos usuários de crack da cidade. Minhas pernas me levavam por ruas conhecidas, ruas que fazem parte das profundezas do meu ser, muito faltava para que minhas roupas ficassem inteiramente ensopadas. Se agora escrevo, faço-o para tentar encontrar o momento exato que cheguei a conclusão sobre a bondade inexistente. Seria saudável que todos fizessem o mesmo. Dediquemo-nos a entender o fio condutor de nossa existência, querido diário. Eu pensava em meu irmão e no que ele poderia estar fazendo. Será que chovia onde ele estava? Nesse mesmo instante das reflexões lembrei que ele sempre fora um cara bom.
            É angustiante imaginar que vivemos cercados de pessoas, algumas poucas que honradamente chamamos amigos. Durante toda a minha vida tive amigos, todos temos. Temos todos, amigos. Amigos, meu diário, todos temos. Nem bons, nem ruins, apenas amigos. Amigos são palpáveis, podemos tocá-los e, por vezes, sentir as suas dores. Percebemos quando enrubescem. Vislumbramos os sorrisos largos e resplandecentes. Não há bondade nisso, aliás, não há nada de abstrato nos amigos, há os vícios e as virtudes próprias de cada um, mas não há áureas, nem auréolas.
            Em algum lugar da cidade, enquanto eu sofria a caminhar pela chuva, esvaia-se a vida de um cara bom.

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