segunda-feira, 8 de abril de 2013

Especial "Texto de número 50"


Na segunda-feira, trinta de julho de dois mil e doze, dia de clima ameno, desses que não se sabe como nem por que terminam, de tanto que as horas parecem não quererem se desprender dos minutos, estes dos segundos e estes outros dos milissegundos num arrastado prolixo de dia que parece estar indeciso se, afinal, deixa ou não o sol ceder o seu imponente e indiferente lugar a diáfana lua, inspiradora dos românticos incorrigíveis, se é que eles ainda existem, como reclamam as mulheres, ainda mais numa segunda-feira como essas onde a Terra parece ter se desgarrado da Galáxia e agora anda a vagar a procura de uma nova estrela para orbitar com os seus movimentos de rotação e translação; aconteceu, dizia, nesta segunda-feira de hercúleas horas, o meu primeiro contato com a morte! Por esses dias, como que por obra de um assustador acaso, andava a ler ‘As intermitências da morte’, do Saramago, livro que trata de um país fictício, o corriqueiro na obra deste autor, onde tudo por mais realista e palpável que seja, consegue manejar o absurdo com os dedos racionais da filosofia. Nesta nação a morte deixou de dar o ar de sua “graça”. Daí, uma série de acontecimentos absurdamente possíveis diante do absurdo primordial proposto enredou a trama da qual, viu-se num final não menos pitoresco do que a “ausência da morte”, a personagem central e ‘encarnada’, vejam só, como o “Verbo Encarnado”, era a própria morte, com ‘m’ minúsculo mesmo, porque a morte da qual se tratava, era dessas que se nos acometem aqui e ali e, por vezes, nem nos damos conta, essas mesmo que são como ponto final de uma oração, onde, na construção do sentido, não é mais importante que as vírgulas que o precederam. Era isso. A morte era uma personagem, travava diálogos com a sua foice, ou gadanha, como preferirem, mas era isso, agora posso muito bem entender: a morte era a personagem central! E naquela segunda-feira me deparei com a morte. Neste dia não me dei pelo assustador acaso, mas, na intranquilidade dos dias que se sucederam, e me parece que as principais histórias que vêm colorir esse grande imaginário que é a linha do tempo da humanidade são forjadas no fogo da intranquilidade de seus autores, mas, dizia eu, nos acontecimentos que se sucederam nos dias posteriores ao meu encontro com a morte, que, aliás, vocês não perdem por esperar, a não ser um pouco de paciência; bom, nesses dias intranquilos pensei, como o Saramago, nas coisas mais absurdas, mas, no que tange ao absurdo ser o ponto de vista às avessas do normal, não seria menos racional, dadas as contextualidades, às intercontextualidades e às intermitências não da morte, porque, apesar de naquele dia eu ter me encontrado com essa senhora gorda vestida de preto como já nos preparou Proust, mas às intermitências da vida, porque a minha mesmo, depois deste relato clean como todos podem, desde já, perceber, não terá ponto final, ou morte com ‘m’ minúsculo.

            Por agora vamos dar voz a essa história e deixar a prolixidade junto da morte, essa mesma que irá se encontrar comigo no decorrer das próximas páginas. Deixemo-las aqui devidamente engavetadas e deitemos mão ao início do fio dourado da minha vida.

Chamo-me Carlos de Deus Brasileiro, filho de Maria Isalina Brasileiro e Inácio de Deus Brasileiro. Nasci no ano de mil novecentos e oitenta e nove nesta sua mesma cidade. Sou de origem nordestina, visto que meus pais são filhos do chão gretado do cariri paraibano. Todos os meus dilemas e traumas da infância, como não poderia deixar de ser, condensaram-se na figura esguia de Pai. Apesar de sua estatura ínfima e de seus trejeitos sempre expressivamente perplexos, como se algo inoportuno fosse, de um segundo pra outro, o assomar de corpo inteiro, o que muito pouco bastaria, Pai, mesmo assim, sempre me fez temê-lo. Ora, afinal só poderia ser a ele, meu irrequieto pai, filho do chão gretado, nascido e criado no período turbinar dessa metrópole mesma que a todo o momento parece nos querer engolir, que eu deveria honrar com o já celebre posto de meu castrador. Como se pode não rezar antes de dormir, como se pode, Deusito Brasil - a forma que, carinhosamente, me alcunhava – quero que todas as noites, antes de cobrir-se com seus sedosos edredons, clame a nossa senhora, virgem santíssima, que lhe interceda a Deus, pela sua proteção; e continuava, Muito me admira o seu aspecto assustado, de quem herdou isso, só pode ser da família brejeira de vossa mãe, porque a mim, teria que ter herdado a coragem; temor só mesmo à Deus Pai, num viu. E dizia tudo isso numa rispidez imagética, vejam só, porque por mais que Pai se esforçasse em parecer durão, por mais que se esforçasse em parecer Pai, não conseguia fazer se perderem os intermitentes tremeliques que o faziam  levantar de leve a sobrancelha. Aliás, que sobrancelha, juntava-se uma a outra, uma monocelha medonhamente crispada. Afinal, dizia, era somente essa figura que poderia vir um dia a me castrar. Mãe era pra mim a Gioconda, a candura, a salvadora dos aflitos, a cordeira de deus, a ressuscitadora dos mortos, nascida do colo mais puro! Mãe era a verdadeira rainha do lar. A figura esguia e perplexa de Pai era totalmente o inverso da postura de Mãe, quem entrasse em casa quando ambos estivessem sentiria a diferença que nada tinha de sutil. Mãe parecia ter nascido diretamente de algum romance de Flaubert, enxergava a vida como ela é, sem muitos rodeios e vírgulas. Mãe era nelsonrodriguiana. Suas frases sempre continham ponto final. Era a responsável por trazer Pai de volta a terra quando este sofria alguma espécie de frêmito horrível mediante a iminência dos órgãos públicos virem exigir explicações sobre a posse do terreno em que, de forma imponente, se levantava a nossa humilde, porém não pouco real, casa. Pai não possuía as escrituras. Mas essa parte será mais bem contada com desenrolar de nossa história.

Pai, nunca entendi o porquê, sempre explicitou seus pesares a Deus pela má fortuna de me ter como filho, chamava-me palerma e, por vezes, maricas. Certo dia interpelou-me com veemência, Como poderia tal caso herético, Deusito, disse certa vez muitíssimo irritado, Pretendo inscrever-lhe numa dessas academias que estão borbotando em todos os lugares da cidade como igrejas evangélicas, o povo daqui está a cada dia mais afeminado, mais querendo parecer-se com o povo da tevê, veja só, mas, preste atenção molecote, não desvie o olhar de vosso pai, vou lhe inscrever numa dessas lutas de defesa pessoal, num sabe. Embasbaquei-me, como assim defesa pessoal, Ontem de tardinha depois da escola, contou Pai, conversei com seu primo, aquele cabeção do Gilsinho, disse que o senhorito anda fugindo dos brigões da escola, como pode ser isso, me diga, Não, Pai, por favor, como pode acreditar nesse chato do Gilsinho, no recreio passo o meu tempo a ler os parcos livros da biblioteca da escola, como a merenda que mãe põe na minha lancheira na mesinha da própria biblioteca, não me meto com ninguém na escola – tentei em vão defender minha honra, mas Pai estava decido, Ora, pois, não quero filho maricas, rato de biblioteca, lendo novelinhas na escola, quero cabra macho, bom pra lidar com a dureza da vida, porque a vida é dura pra todo mundo, e não haverá de ser diferente com o romanceirinho, Mas, Pai, eu sou cabra macho feito o senhor, ajudo mãe nos afazeres da casa, Pois quero é isso mesmo, e quero que no recreio vá brincar com as outras crianças de sua idade, deus nosso senhor nos privou dos deleites do Éden por conta de nós mesmos e nos disse que deveríamos nos esfolar de trabalhar para conseguir o pão de cada dia, todos os dias, incessantemente, porque a maldita da Eva nos comeu aquela fruta pecaminosa, aprenda com isso e não coma das frutas pecaminosas da biblioteca, quero que conviva com seus colegas de escola e não fuja de briga caso aconteça. Pai falava tudo isso e eu percebia que sempre desviava o olhar, ficava de esguelha com o teto, fiquei com um medo ainda maior dele, E fique o senhorito romacerinho sabendo, seu Deusito, que, se apanhar de algum de vossos pariceiros na escola, leva uma surra de vara em casa assim que chegar de lá!

 

            É claro que eu não deixei de frequentar a biblioteca da escola, parca na bem da verdade, mas ainda assim se tratava de um mundo descoberto havia pouco tempo, que me encantou profundamente. No começo, como em todos os casos, foi bem difícil andar de um lado a outro portando um pesado dicionário, um dos poucos que dispunha a biblioteca, de capa dura, guarnecido de imagens e notas literárias explicativas dos termos. Essas notas foram as responsáveis por me fazer arder de desejo por essa tal de Literatura Brasileira, reinava nessas notas, quase sempre, o tal do Machado de Assis com o tal do Dom Casmurro. Tinha um primo mais velho que chamava a todos de casmurro. Esse primo era um tanto quanto desmantelado, usava roupas larguíssimas e camisetas estampadas com o rosto daquele heroi jamaicano, o Bob Marley! Bom, seguindo em frente sempre, como dizia, era sempre o Machado de Assis que reinava nas notas explicativas dos verbetes no dicionário e, sendo assim, massacrado pela infâmia de nunca ter lido esse Dom Casmurro, essa Capitu e esse tonto do Bentinho (sabia o nome das personagens, pois tinha lido uma sinopse rasteira numa das revistas, que eram também poucas, da biblioteca), resolvi perguntar à bibliotecária, uma senhora de grossos pelos nos braços e lentes dos óculos, cabelos presos em coque no cucuruco da cabeça, como dizia e fazia a minha avó, se ali eu conseguiria encontrar o Dom Casmurro – perguntei de boca cheia, orgulhoso, provavelmente eram poucos os alunos na história daquele colégio que tinham perguntado de um romance de tamanha importância na nossa literatura. De muita má vontade, a bibliotecária me informou que sim, tinha o exemplar, Um pouco mais de destreza da vossa parte para procurá-lo nas estantes e tenho certeza, o encontrará! Falou sem botar os olhos em mim, como se nem desse pela minha presença. Que bruaca essa dona! Possui um cargo etéreo, de guardiã de livros e nem se apruma para fazer jus a posição que ocupa. Irritei-me profundamente com o mau comportamento da peçonhenta e lhe proferi um “Obrigado” pausado e repleto de dispauterados rancores nas entrelinhas! Ela não percebeu, provavelmente, e a mim resignou a tarefa de encontrar aquele título nas poucas estantes de madeira fedorenta e de aspecto horrivelmente encanecido, não seria lá dos trabalhos mais onerosos e brutais. Deixei a despeitada lá no balcão curtindo a sua arrogância e me embrenhei na procura dos olhos de ressaca de Capitu. Acabei encontrando numa estante dos fundos, acho que a mais velha de todas e, como seria típico ou propriedade de tudo que é enrugado, a mais malcheirosa! Fiz o empréstimo para levar o livro pra minha casa. A chata da bibliotecária fez a minha comanda, procurou o meu cadastro no ficheiro, o que não foi nada difícil, visto que eu era um dos poucos frequentadores daquele ambiente velho e sábio, como seria típico e propriedade de tudo que é enrugado.

 

            Estava em êxtase! Já havia enfrentado leituras que eram verdadeiras batalhas, aqueles contos infanto-juvenis, sempre munido do meu séquito mais importante, o pesado dicionário de capa dura que continha figuras e notas literárias exemplificativas. Voltava pra casa serelepe, ansioso por, de uma vez por todas, me deliciar com uma leitura que em tudo quanto era revista de biblioteca dizia ser “um clássico de nossa literatura”! Cheguei em casa e qual não foi o meu desespero ao deparar-me com Pai, com as chaves do velho Chevet nas mãos, Vamos para academia, Deusito, hoje é a sua primeira aula de Karatê Shotokan!

 

            De nada adiantaram os meus dramalhões protestos repletos de lágrimas, lamentações e rangeres de dentes! Pai, com aquele ar assustado que sempre me botou a tremer os camibitos, pediu-me que tomasse mão da sacola que estava jogada no sofá, onde dentro continha o famigerado kimono japonês e uma faixa branca. Puxou-me pela gola da camiseta – e eu ainda estava enfezado, com cara de poucos amigos, tentando, em vão, enrijecer os joelhos -, no que fui forçado, assim, a adentrar àquele recinto mal cheiroso de graxa, óleo de motor e peixe que era o interior do guerreiro Chevet. Digo guerreiro porque, aquele sim, já passou por pouquíssimas, mas não menos boníssimas. Certa vez, Pai, foi até Mairiporã pescar de tarrafa, aprendizado oriundo das raízes nordestinas dos açudes, numa área preservada e vigiada pela polícia ambiental. Para tanto, embrenhou-se no mato dirigindo o guerreiro Chevet que tinha uma cor entre um cinza-macarrão azedado e um alaranjado-ferro oxigenado o que lhe garantiu máxima eficiência nas artimanhas da camuflagem clandestina, se é que em algum caso poderá não ser assim. Quando saiu na função de jogar a quirela Multiplicadora nas margens do lago, a fim de atrair os peixes (rompante maldito dos homens em quererem fazer as mesmas estripulias que seus deuses), um macaco bugio, desses que soltam uivos de enorme estridência, entrou no velho Chevet, visto que Pai, não sei se pela natureza assustada ou se pela ânsia vívida dos homens impertinentes, acabou por esquecer um dos vidros de uma das portas do carro de todo descido. O macaco fez de um tudo lá dentro, como era de se esperar. Pululava feito os saltimbancos dos livros infanto-juvenis que eu andava sempre por ler, rasgou e jogou fora a espuma dos bancos, defecou, mordeu o volante, babou no câmbio e trincou o vidro traseiro. Naquele dia a pescaria de Pai não foi das melhores, apenas algumas bobas piabas e outras duas cascudas tilápias descarnadas que, no fim, precisou utilizar para seduzir o velho bugio que se recusava, impertinente bicho do mato que era, a sair do Chevet. Pai perdeu as tilápias e a milagrosa quirela Multiplicadora de nada serviu no final das contas.

            Mas, como dizia, fui imposto a participar da minha primeira aula de karatê shotokan. Foi lá que conheci duas pessoas importantes para esta história. Ou não, afinal, tudo tem que possuir certos haveres e deveres com a morte. A vida, curta porque doada, nada mais é que uma sucessão de eventos justapostos onde uma fagulha de segundo para mais ou para menos pode ser responsável por mudar inteiramente o final de qualquer história! Bom, como dizia, o leitor não repare, por favor, nesses sucessivos desvios da história, afinal é sempre bom poder respirar um pouquinho dessas nossas vãs filosofias, digo vãs porque já nos apropriamos tanto desses pequenos simulacros de vida próprias de nossas várias relações interpessoais que já se transformou em vital o ato de monologarmo-nos as mais esperançosas frases feitas e clichês que sempre foram ditos e nunca empregadas na realidade; droga, aconteceu de novo, dizia eu, afinal, que na academia de karatê shotokan conheci o Baldoliro e a Katiana...

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