terça-feira, 15 de março de 2011

A Morte e a Morte de Muamar Kadafi

           Ter por regra a ignorância das regras. Contemplar a fidelidade das normas ao povo que carrega consigo origens que não podem ser exterminadas e jogadas aos ventos ocidentais, ventos esses que carregaram consigo as “chamas que pulverizaram lembranças daquele que morreu na cruz”.
           
Era o ano de mil novecentos e sessenta e nove. Era mais um desses heróis que marcam na alma do povo o estigma da esperança. A imagem deflagrada do bem comum. A fantasia. A Líbia Monárquica. A Líbia do ouro negro, a Líbia do golpe de Muamar Kadafi.
Certa vez passou mal, entrou no hospital, pediram para aguardar. Aguardou todo o tempo e quando não tinha mais o quê aguardar foi em direção a uma sala-consultório onde se ria. Ria-se muito. Ao adentrar expôs que continuava a passar mal e não agüentava mais esperar no que foi respondido rispidamente que então fosse embora. Desfez-se da túnica e da manta que lhe cobria o rosto e deixou-se revelar. Era o então ditador da Líbia, o desregrado Kadafi: “Quero os nomes, amanhã estarão demitidos e extraditados.”
O maior Império Islâmico que já existiu: Egito, Argélia e Líbia. Era esse o sonho do jovem ditador. Colocar em primeiro plano os ensinamentos do Corão. No seu governo o “Jamahiriya” (Estado das Massas) não existem partidos, são tribos líbias as responsáveis por definir as atitudes estadistas. É como, a alguém que tem fome, oferecer-lhe apenas o cheiro da comida. Na prática a oposição é violentamente reprimida.
O princípio de ditadura nunca será substituído pela ditadura realmente implantada. Filósofos agradecem diariamente ao filho da puta do Voltaire, do Rousseau, do Marx e do cara a quem chamam Platão por lhes fazerem perceber os detalhes do relevo que tem cada lado da moeda. Tem-se de um lado César, do outro pode existir Muamar Kadafi. E é aqui, bem nessa parte que morre o “líder popular” da nossa história, o nosso herói. Morrem com ele muitos outros monarcas, presidentes e ditadores, como morrerá esse texto também.
A mulher a quem amo, por mais amada que seja nunca sentirá a real idéia de amor que tenho por ela. Pois nada substitui o valor que tem o racional mundo das idéias. Os amigos a quem considero família nunca terão de mim a real consideração, pois a minha democracia, a minha ditadura, a minha monarquia, a minha arte, o meu ser inteiro é apenas material, é orgânico e artificial ao mesmo tempo.
            Quando criança o mundo o recebeu de forma glacial. Num lugar onde o sol “dita” as regra. Cresceu vislumbrando olhares caídos, trôpegos dos irmãos que nasceram gretados pelo sol e pelo islamismo. O ditador é aquele que vislumbra olhares e percebe o dom que tem cada palmo de chão da sua amada nação. Constrói o futuro à partir do que já lhe foi vivenciado, mas todo ditador é mitificado pela tragédia que lhe causa o poder, a lança que perfurou o lado do Cristo.
No Mediterrâneo navega agora. Ao redor apenas a fria cor do mar. No céu contempla as estrelas que lhe transferem a tempos onde lhe impuseram novas formas de se viver que feriam todas as marcas originais que banhavam sua alma. Chora por todos os irmãos que não conseguiram enxergar nele a personificação do “bem comum” e que pelo fogo foram mortos. Fogo esse que lhe queima as mãos. Leva essas mesmas mãos ao rosto e grita gemendo, ajoelhado a primeira grande fase do seu “reinado”: “A Líbia necessita de alguém que a faça chorar, não rir.”
Chora e morre Muamar Kadafi, o nosso herói. Transcende para algum lugar, do qual sempre teve certeza que existia, onde moram agora todos os ditadores, presidentes e monarcas que um dia almejaram a felicidade alheia, mas caíram na falsidade moral que é o seu próprio ser.

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