quarta-feira, 30 de março de 2011

Uma imagem de infância

            Nos já longínquos tempos da década de noventa um ser diferenciado habitou a minha casa. Era o Milu, um cachorro vira-lata que desprendia atenção das mais pacatas e “invibrantes” pessoas.
            Tinha aguçada a sagrada característica canina de conversar com os olhos. Certa vez, ao contar uma de suas incontáveis anedotas, minha mãe, uma jovem-velha alegre extraiu sorrisos atônitos de Milu, que pululava de um lado para o outro enquanto latia. Seus olhos germinavam pontinhos brilhantes. Os que estavam a ouvir as velhas lorotas da minha mãe, que tinha de cenário os idos tempos de nordeste, ficaram embasbacados com o jovem cão a fazer-se gente.
            Da janela de casa podia-se ver o serelepe cãzinho no quintal a caçar as borboletas; a língua pra fora, os malogrados saltos, as patas unidas nas tentativas frustradas de alcançar as coloridas asas do inseto. Entre uma tentativa e outra, um salto e outro, Milu olhava, de relance, para a janela onde estava como se me convidasse a caçar as intrépidas borboletas com ele. E seus olhos me humilhavam com aquela alegria simples.
            Começava a me intrigar aquele cão. Quando a fome se lhe apresentava, ele nos atirava um olhar sedento, o frio os fazia minguar, o calor os trazia sonolência. E assim, de sensação em sensação, do trépido rabo a balançar à língua pra fora a gotejar, de latido em latido, Milu conversava. Fazia-nos mergulhar no imaginário da linguagem, no mais absurdo das interpretações, no fantástico mundo das ideias. Milu era um livro do Graciliano, do Virgílio e do Vitor Hugo. Compreendida a clareza de seus gestos se chegava a palpar o seu interior, interior de cão, que nada mais quer além do interior do homem.
            Era um insulto aquele cão. Admirado por todos os vizinhos, assistido por todos os transeuntes, Milu adorava ser gente em meio a gente. Jogava baralho com a terceira idade na praça, corria de um lado para o outro na “queimada” das crianças, ajudava pessoas cegas e velhinhas a atravessarem a avenida e ria das lorotas de mamãe.
            As orelhas baixas, focinho fino, quase pontiagudo, as manchas negras e beges contrastando com o resto branco, o corpo e os gestos magros, simples. As patas eram as responsáveis por resplandecer suas vicissitudes.
            Eu era indiferente, me fazia de difícil com os encantos do vira-lata. Complexava-me com a humanidade integral do cão. Mas aos poucos fui me rendendo, como se faz aos livros.
            Foi nesse período de convalescença moral da minha repulsa implicante ao vira-lata que aconteceu uma das dores mais fortes da minha vida. Daquelas que deixa nódoas na alma.

            A tristeza de seus “fãs”, a minha tristeza. A morte de Milu. Como se herói fosse, no apagar do brilho de suas retinas.
           
            Todos em casa permaneceram cabisbaixos durante muitas semanas. Outros animais de estimação chegaram na tentativa (absurda) de substituir o cachorro que era homem. Claro que não deu certo, afinal aquele vira-lata não era homem, cão, gato, ou coisa alguma, era um ser abstrato incapaz de caçar borboletas. Milu era uma ideia insultante, dessas de revolucionários.

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